Preparo, chamado e opção profissional são elementos que se misturam e se chocam na formação dos pastores brasileiros.
Estima-se que cerca de 90 mil pessoas, no Brasil, exercem a função de pastor evangélico. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, um número quase cinco vezes maior do que o de padres, que, em 2006, chegavam a 18.685, de acordo com o Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais, ligado à Igreja Católica. E se é difícil dizer com precisão quantos pastores há no país – a quantidade pode ser bem maior, já que a informalidade é regra e novas congregações surgem da noite para o dia –, também não é tão simples definir exatamente como é o seu trabalho. O que para alguns é uma profissão como qualquer outra, com salários e metas a alcançar, para outros é o mais importante chamado divino, a que nada pode se comparar. Pelo país, pastores-animadores, pastores-empresários e pastores-CEOs dividem espaço com ministros à moda antiga, que investem o tempo em ensinar, ouvir e aconselhar o rebanho de Deus. Entre doutores e leigos, ricos e pobres, seu modo de atuar é tão variado quanto sua formação.
Não por acaso, cursos de teologia proliferam no Brasil com tanta velocidade quanto às novas igrejas. Desde 1999, o Ministério da Educação (MEC) passou a reconhecer os seminários de teologia como cursos de nível superior, com as exigências comuns a qualquer outro tipo de faculdade. Dados do Instituto Nacional de Educação Pública (Inep) mostram que, entre seminários católicos e evangélicos, há 82 instituições reconhecidas – o que não desmerece as demais. Vários dos melhores seminários evangélicos do país não foram atrás do reconhecimento do MEC e seguem com seus antigos currículos. Muitas delas são ligadas à Associação Evangélica de Ensino Teológico na América Latina (Aetal), com sede em São Paulo, que congrega 120 estabelecimentos brasileiros reconhecidos por sua excelência. Para ser filiado, o seminário tem que ter sua “declaração de fé” aceita e ainda precisa passar pelo crivo do Conselho Consultivo da Aetal. O objetivo, de acordo com o estatuto da associação, é “fortalecer a formação de líderes para a América Latina”.
“A procura por formação teológica tem sido imensa. O pentecostalismo clássico se abriu muito para o estudo teológico, até para ter uma identidade de maior seriedade”, explica Fernando Bortolleto, diretor-executivo da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (Aste) e professor do seminário da Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo. Com 47 anos de existência, a Aste tem 40 instituições filiadas, todas bem conceituadas. A busca por profissionalização e de melhor preparo favorece o crescimento do interesse por teologia, afirma Bortolleto. Ele deplora, porém, a idéia de que a vida dos pastores seja fácil e com muito dinheiro. “A imprensa não coloca nas manchetes o que é mais normal, e sim o que causa estranheza”, declara, observando, no entanto, que há jovens que pensam na função pastoral como alternativa diante de fracassos profissionais: “Há muito bacharel em teologia sem qualidades mínimas para ser pastor”, diz, sublinhando a grande diferença entre estudar, mesmo em um bom seminário, e ser ordenado para o ministério.
Para Bortolleto, formação acadêmica é fundamental para o bom desempenho de um pastor evangélico, ainda que possuir um diploma não significa que se esteja preparado para exercer a função. “Ver o trabalho ministerial como profissão tem um lado positivo: o pastor deve ter seus direitos resguardados, pois é um trabalhador que precisa sustentar sua família. Mas formalizar a profissão, como outra qualquer, seria complicado”, avalia. No Brasil, a Justiça do Trabalho também tem entendido desta maneira. São comuns casos de pastores que processam igrejas com intuito de receber indenizações de cunho trabalhista. Os juízes, entretanto, têm negado esses pedidos e as decisões já geraram jurisprudência: “É inadmissível, em Direito, conceituar como de emprego a relação entre o pastor e sua igreja” (Arnaldo Sussekind e Délio Maranhão, in Pareceres sobre Direito do Trabalho e Previdência Social, LTr, p. 43). “O vínculo que une o pastor à sua igreja é de natureza religiosa e vocacional, relacionado à resposta a uma chamada interior e não ao intuito de percepção de remuneração terrena”, diz, em 2003, relatório do ministro Ives Gandra Martins Filho, do Tribunal Superior do Trabalho.
Caminho rápido – Se as melhores universidades investem no ensino a distância, pela internet, não poderia ser diferente com os cursos de teologia brasileiros. As ofertas são muitas, e para todos os gostos. “A paz do Senhor Jesus”, diz amavelmente a consultora de vendas Yakyma Matos, de 22 anos. Ela fala de Ituiutaba (MG), e atende os interessados em obter um diploma de bacharelado, mestrado ou doutorado em teologia pagando até R$ 2 mil por um curso à distância. “O diploma pode chegar em três meses, desde que esteja tudo pago”, informa. Basta o aluno enviar ao Seminário Brasileiro de Teologia respostas para as perguntas que vêm com as apostilas, preparadas por Omar Silva da Costa. Apresentado como pastor e reitor, ele ostenta um currículo quilométrico, publicado no site. A reportagem o procurou, mas foi encaminhada a Marcos Marques Muniz, também pastor e relações públicas da instituição, que foi mais longe: “Somos o primeiro seminário no Brasil e no mundo a ordenar pastores”, anuncia – e eles fazem isso também à distância. Pagando 1,2 mil reais por cinco apostilas e mandando de volta o questionário respondido, em três meses qualquer pessoa pode ter um “Diploma de Ordenação Pastoral”.
De acordo com Muniz, em 18 anos de existência, o Seminário Brasileiro de Teologia já conta 34 mil alunos no Brasil e no exterior. Com desenvoltura, o pastor também diz que o título de “Doutor” é bíblico – “a pessoa estuda a profundeza de Deus” – e também pode chegar após um único trimestre. “Qualquer um no Brasil que tiver gosto por igrejas evangélicas pode alugar um salão e duzentas cadeiras, pendurar na porta uma placa e ser pastor da própria congregação, como garante a Constituição”, justifica. Pois para maior espanto daqueles que defendem o preparo formal de obreiros cristãos, dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional podem facilitar ainda mais o acesso de qualquer um ao título de teólogo.
O pastor Cyro Mello, secretário-adjunto da Convenção Geral das Assembléias de Deus do Brasil (CGADB), declara que a denominação estuda as medidas judiciais cabíveis contra o Seminário Brasileiro de Teologia. É que outro site do grupo, onde se vê a foto de Omar Silva da Costa, usa o nome “Convenção Geral das Igrejas da Assembléia de Deus do Brasil” – uma sutil diferença. Ele diz que as Assembléias de Deus não costumam fazer nenhum caso com grupos que usam o nome da denominação sem pertencer a uma das convenções, a não ser em situações mais sérias. “Pessoas incautas, humildes, acabam se confundindo”, aponta Cyro, explicando que os pastores das Assembléias de Deus estudam pelo menos quatro anos e depois são avaliados pela denominação, para só então serem ordenados.
Pilar da Reforma – “Há um seminário em cada esquina. Pode-se comprar diplomas”, protesta o pastor Roberto Schuler. Filho de suíço com brasileira, 48 anos de idade, ele tem mestrado, doutorado e atuou como pastor da Igreja Batista na Basiléia e da Igreja Reformada, em Zurique. Agora, Schuler foi convidado pela Convenção Batista Brasileira para assumir a reitoria do Seminário Batista do Norte do Brasil (SBNB), em Recife (PE), uma instituição centenária. Ele evita criticar o ministério de leigos. “Não tenho nada contra o sacerdócio universal de todos os crentes, que é pilar da Reforma Protestante”, declara. “Numa localidade onde não haja ninguém com preparo formal, não sou contra uma pessoa leiga dirigir o trabalho, com amor e sacrifício pessoal”. O problema começa, avalia ele, quando a motivação é outra. “Pessoas exploram comunidades inteiras, com cultos que giram em torno da arrecadação. O ministério pastoral tem caído em descrédito, com muitos escândalos, devido a essa falsa teologia da prosperidade, que não é nem digna de ser chamada de teologia”, lamenta. “Na Suíça, um dos países da Reforma, ser pastor é coisa de um prestígio social tremendo. Os ministros têm curso reconhecido na universidade, conhecem grego, hebraico, latim.”.
“Estudei sete anos e meio, fiz um dos seminários mais exigentes e sei que muita coisa ainda falta”, reconhece, por sua vez, Alceu Lourenço de Souza Jr., de 36 anos, que tirou a maior nota no exame nacional de avaliação que a Igreja Presbiteriana do Brasil faz entre todos os seminários da denominação. Casado e com três filhos, Alceu, que era garçom, se candidatou e esperou dois anos para ser indicado pela sua congregação para começar a estudar no Seminário Teológico Presbiteriano, em São Paulo. E rebate a idéia de que tornar-se pastor é mera opção profissional ou uma chance para ter tranqüilidade financeira. “Senti um peso de responsabilidade pela igreja. Em nossa denominação o pastor não é dono da igreja nem do cofre, e costuma ter a remuneração média dos membros”, explica. Quanto aos pastores leigos, Alceu é taxativo: “Se Deus já está usando quem não tem instrução, creio que esse irmão deva buscar o máximo de formação que puder. Por que repetir erros por falta de conhecimento?”, conclui.
“A Bíblia diz que Paulo fazia tendas e que Neemias construiu os muros da cidade de Jerusalém. Pois eu sou pedreiro e pastor”, diz José Antonio Fernandes Espinela, de 51 anos, pastor da Assembléia de Deus Ministério Glória, na favela da Lagartixa, em Costa Barros, subúrbio do Rio de Janeiro. Nascido e criado no Evangelho, Fernandes, como é conhecido, estudou até a 5ª série do ensino fundamental e parou aos 17 anos, para trabalhar. Fez um curso de teologia básica em uma Assembléia de Deus e depois ordenado por um pastor pentecostal. “Sou respeitado na comunidade, mesmo entre os traficantes”, conta Fernandes, acrescentando que seu ministério tem levado muitos bandidos a Cristo. A igreja funciona em sua própria casa e reúne 40 pessoas. Seu trabalho pastoral? Evangelizar, orar e visitar as pessoas que sofrem. “O povo é pobre e não pode ajudar muito, então também faço trabalho de pedreiro. Algumas pessoas sentem no coração e dão ofertas, que são bem-vindas. Não peço nada, mas vivo da fé”, resume o pregador, que é casado e tem dois filhos.
Em Ourinhos, cidade do interior paulista, o pastor presbiteriano Eduardo Emerich, no melhor estilo calvinista, afirma que seu ministério estava decidido “desde o ventre” de sua mãe. Para ele, o pastorado não se trata mesmo de profissão. “O chamado nasceu e cresceu comigo. Ministério é vocação. Eu me dispus a exercê-lo e nunca dependi financeiramente da igreja”, ressalta, explicando que há 39 anos divide o tempo entre a congregação, que nunca passou de 150 membros, e o magistério, de onde tira seu sustento. “São quatro horas diárias para a igreja e quatro para a escola. Formei várias gerações de bons cristãos e bons cidadãos”, sublinha Emerich. Ao contrário do que muita gente pensa, ele afirma que ser pastor não dá lucro. “É como jogador de futebol; uns três ou quatro fazem sucesso e o resto apenas vive de modo satisfatório”, compara.
“Vasos de barro” – Para David Kornfield, fundador do Ministério de Apoio a Pastores e Igrejas (Mapi), as maiores dificuldades do ministério pastoral hoje são seminaristas sem claro sentido de vocação, as famílias disfuncionais dos futuros líderes e a ausência de mentoria espiritual. Ou, como prefere dizer, a falta de “pastoreio de pastores”, o que, acredita, poderia resgatar o sentido da vocação bíblica. Americano radicado em São Paulo e com doutorado em educação, Kornfield dá valor aos pequenos grupos, que buscam praticar o discipulado cristão e dividem suas experiências – o que chama de “pastoreio mútuo”, ao estilo da Igreja primitiva. Ele acredita que a tendência, em geral, é as igrejas darem cobertura aos pastores leigos e gradativamente ajudá-los com mais conhecimento bíblico, maturidade e firmeza emocional e espiritual. “As denominações tradicionais estão se abrindo para esta realidade e têm que se abrir mais, se não quiserem ser deixadas para trás”, comenta.
“A vocação leva as pessoas a manter os olhos e a mente voltados para Deus e para a cruz de Jesus Cristo”, sintetiza o pastor Ricardo Barbosa de Sousa, 52 anos, 25 deles à frente da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF). Ele dá aula de teologia pastoral no Seminário Presbiteriano de Brasília e ministra cursos no Seminário Teológico Servos de Cristo, de São Paulo. Barbosa lembra que o ministro tem a missão de viver como vaso de barro que leva o tesouro da Palavra de Deus, como descreveu o apóstolo Paulo: “Ele não tem poder nem sobre o serviço nem sobre o povo. Nenhum deles é seu”, continua. “O importante é o tesouro, a Palavra, mas muitos supervalorizam o barro, que só é valioso se permanece barro”.
Ele aponta para armadilhas no caminho dos pastores. “Duas palavras são muito usadas pelo diabo: a primeira é ‘leigo’, e 99% da igreja é qualificada nessa nomenclatura que a afasta de seu chamado. A outra palavra perversa é ‘profissional’, cujo foco é produtividade, renda, competência, ganho. Essa despersonalização leva o pastor a virar um executivo, um gerente religioso”, avalia. Para ele, a qualificação é pouco determinada em termos acadêmicos. “Há o aspecto afetivo: ‘Pedro, tu me amas?’, pergunta Jesus. E o que fez de Pedro alguém preparado para apascentar as ovelhas de Deus foi a intensidade de seu afeto para com o Senhor. O mais simples dos pastores, ao responder ‘tu sabes que te amo’, fará o melhor”, sentencia.
(Colaborou Treici Schwengber)
Projetos em andamento no Congresso Nacional
Se boa parte das denominações brasileiras têm incentivado seus pastores a buscar formação teológica, outro segmento evangélico parece trilhar caminho oposto. Dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional pretendem conferir o título de teólogo a quem simplesmente exerça algum cargo de liderança eclesiástica – aí incluídos os líderes de pequenas congregações independentes, missionários autônomos e até simples dirigentes de culto. Uma das propostas é do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), ligado à Igreja Universal do Reino de Deus. No entender do parlamentar, qualquer pessoa que exerça há mais de cinco anos a atividade de teólogo, mesmo sem qualquer formação, deve receber o título.
Já o projeto do ex-deputado peemedebista Victorio Galli, que é pastor da Assembléia de Deus no Mato Grosso, visa a considerar como teólogo desde quem administra comunidades religiosas até aqueles que simplesmente pratiquem a “vida contemplativa e meditativa” e realizem obras sociais de caráter cristão. Tais iniciativas, se transformadas em lei, permitiria que mais de um milhão de pessoas fossem consideradas teólogos, mesmo sem qualquer estudo na área. Hoje, na maioria dos seminários brasileiros, a colação de grau em teologia exige pelo menos quatro anos de estudo em nível universitário.
Informalidade é a regra
O ofício de pastor evangélico é reconhecido na Classificação Brasileira de Profissões, que o agrupa na categoria de “ministros de culto, missionários e teólogos”. Mas não é uma atividade regulamentada e não existem normas para exercê-la no país. Cada denominação ou grupo religioso usa as próprias regras, o que inclui a forma de remuneração – e a maioria dos pastores e igrejas prefere assim. Afinal, é bom manter uma distância segura entre Estado e religião. Uma associação denominada Conselho Federal de Teólogos, criada há pouco tempo, tem, no entanto, reivindicado a regulamentação da profissão.
Segundo a assessoria de imprensa do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), ministros religiosos contribuem, em sua maioria, como profissionais autônomos, mas o órgão não sabe informar o número de pastores segurados ou quanto é a contribuição média dessa categoria. A ausência de regulamentação é a razão do Ministério do Trabalho também não saber informar o número exato de profissionais do gênero.
Estima-se que cerca de 90 mil pessoas, no Brasil, exercem a função de pastor evangélico. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, um número quase cinco vezes maior do que o de padres, que, em 2006, chegavam a 18.685, de acordo com o Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais, ligado à Igreja Católica. E se é difícil dizer com precisão quantos pastores há no país – a quantidade pode ser bem maior, já que a informalidade é regra e novas congregações surgem da noite para o dia –, também não é tão simples definir exatamente como é o seu trabalho. O que para alguns é uma profissão como qualquer outra, com salários e metas a alcançar, para outros é o mais importante chamado divino, a que nada pode se comparar. Pelo país, pastores-animadores, pastores-empresários e pastores-CEOs dividem espaço com ministros à moda antiga, que investem o tempo em ensinar, ouvir e aconselhar o rebanho de Deus. Entre doutores e leigos, ricos e pobres, seu modo de atuar é tão variado quanto sua formação.
Não por acaso, cursos de teologia proliferam no Brasil com tanta velocidade quanto às novas igrejas. Desde 1999, o Ministério da Educação (MEC) passou a reconhecer os seminários de teologia como cursos de nível superior, com as exigências comuns a qualquer outro tipo de faculdade. Dados do Instituto Nacional de Educação Pública (Inep) mostram que, entre seminários católicos e evangélicos, há 82 instituições reconhecidas – o que não desmerece as demais. Vários dos melhores seminários evangélicos do país não foram atrás do reconhecimento do MEC e seguem com seus antigos currículos. Muitas delas são ligadas à Associação Evangélica de Ensino Teológico na América Latina (Aetal), com sede em São Paulo, que congrega 120 estabelecimentos brasileiros reconhecidos por sua excelência. Para ser filiado, o seminário tem que ter sua “declaração de fé” aceita e ainda precisa passar pelo crivo do Conselho Consultivo da Aetal. O objetivo, de acordo com o estatuto da associação, é “fortalecer a formação de líderes para a América Latina”.
“A procura por formação teológica tem sido imensa. O pentecostalismo clássico se abriu muito para o estudo teológico, até para ter uma identidade de maior seriedade”, explica Fernando Bortolleto, diretor-executivo da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (Aste) e professor do seminário da Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo. Com 47 anos de existência, a Aste tem 40 instituições filiadas, todas bem conceituadas. A busca por profissionalização e de melhor preparo favorece o crescimento do interesse por teologia, afirma Bortolleto. Ele deplora, porém, a idéia de que a vida dos pastores seja fácil e com muito dinheiro. “A imprensa não coloca nas manchetes o que é mais normal, e sim o que causa estranheza”, declara, observando, no entanto, que há jovens que pensam na função pastoral como alternativa diante de fracassos profissionais: “Há muito bacharel em teologia sem qualidades mínimas para ser pastor”, diz, sublinhando a grande diferença entre estudar, mesmo em um bom seminário, e ser ordenado para o ministério.
Para Bortolleto, formação acadêmica é fundamental para o bom desempenho de um pastor evangélico, ainda que possuir um diploma não significa que se esteja preparado para exercer a função. “Ver o trabalho ministerial como profissão tem um lado positivo: o pastor deve ter seus direitos resguardados, pois é um trabalhador que precisa sustentar sua família. Mas formalizar a profissão, como outra qualquer, seria complicado”, avalia. No Brasil, a Justiça do Trabalho também tem entendido desta maneira. São comuns casos de pastores que processam igrejas com intuito de receber indenizações de cunho trabalhista. Os juízes, entretanto, têm negado esses pedidos e as decisões já geraram jurisprudência: “É inadmissível, em Direito, conceituar como de emprego a relação entre o pastor e sua igreja” (Arnaldo Sussekind e Délio Maranhão, in Pareceres sobre Direito do Trabalho e Previdência Social, LTr, p. 43). “O vínculo que une o pastor à sua igreja é de natureza religiosa e vocacional, relacionado à resposta a uma chamada interior e não ao intuito de percepção de remuneração terrena”, diz, em 2003, relatório do ministro Ives Gandra Martins Filho, do Tribunal Superior do Trabalho.
Caminho rápido – Se as melhores universidades investem no ensino a distância, pela internet, não poderia ser diferente com os cursos de teologia brasileiros. As ofertas são muitas, e para todos os gostos. “A paz do Senhor Jesus”, diz amavelmente a consultora de vendas Yakyma Matos, de 22 anos. Ela fala de Ituiutaba (MG), e atende os interessados em obter um diploma de bacharelado, mestrado ou doutorado em teologia pagando até R$ 2 mil por um curso à distância. “O diploma pode chegar em três meses, desde que esteja tudo pago”, informa. Basta o aluno enviar ao Seminário Brasileiro de Teologia respostas para as perguntas que vêm com as apostilas, preparadas por Omar Silva da Costa. Apresentado como pastor e reitor, ele ostenta um currículo quilométrico, publicado no site. A reportagem o procurou, mas foi encaminhada a Marcos Marques Muniz, também pastor e relações públicas da instituição, que foi mais longe: “Somos o primeiro seminário no Brasil e no mundo a ordenar pastores”, anuncia – e eles fazem isso também à distância. Pagando 1,2 mil reais por cinco apostilas e mandando de volta o questionário respondido, em três meses qualquer pessoa pode ter um “Diploma de Ordenação Pastoral”.
De acordo com Muniz, em 18 anos de existência, o Seminário Brasileiro de Teologia já conta 34 mil alunos no Brasil e no exterior. Com desenvoltura, o pastor também diz que o título de “Doutor” é bíblico – “a pessoa estuda a profundeza de Deus” – e também pode chegar após um único trimestre. “Qualquer um no Brasil que tiver gosto por igrejas evangélicas pode alugar um salão e duzentas cadeiras, pendurar na porta uma placa e ser pastor da própria congregação, como garante a Constituição”, justifica. Pois para maior espanto daqueles que defendem o preparo formal de obreiros cristãos, dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional podem facilitar ainda mais o acesso de qualquer um ao título de teólogo.
O pastor Cyro Mello, secretário-adjunto da Convenção Geral das Assembléias de Deus do Brasil (CGADB), declara que a denominação estuda as medidas judiciais cabíveis contra o Seminário Brasileiro de Teologia. É que outro site do grupo, onde se vê a foto de Omar Silva da Costa, usa o nome “Convenção Geral das Igrejas da Assembléia de Deus do Brasil” – uma sutil diferença. Ele diz que as Assembléias de Deus não costumam fazer nenhum caso com grupos que usam o nome da denominação sem pertencer a uma das convenções, a não ser em situações mais sérias. “Pessoas incautas, humildes, acabam se confundindo”, aponta Cyro, explicando que os pastores das Assembléias de Deus estudam pelo menos quatro anos e depois são avaliados pela denominação, para só então serem ordenados.
Pilar da Reforma – “Há um seminário em cada esquina. Pode-se comprar diplomas”, protesta o pastor Roberto Schuler. Filho de suíço com brasileira, 48 anos de idade, ele tem mestrado, doutorado e atuou como pastor da Igreja Batista na Basiléia e da Igreja Reformada, em Zurique. Agora, Schuler foi convidado pela Convenção Batista Brasileira para assumir a reitoria do Seminário Batista do Norte do Brasil (SBNB), em Recife (PE), uma instituição centenária. Ele evita criticar o ministério de leigos. “Não tenho nada contra o sacerdócio universal de todos os crentes, que é pilar da Reforma Protestante”, declara. “Numa localidade onde não haja ninguém com preparo formal, não sou contra uma pessoa leiga dirigir o trabalho, com amor e sacrifício pessoal”. O problema começa, avalia ele, quando a motivação é outra. “Pessoas exploram comunidades inteiras, com cultos que giram em torno da arrecadação. O ministério pastoral tem caído em descrédito, com muitos escândalos, devido a essa falsa teologia da prosperidade, que não é nem digna de ser chamada de teologia”, lamenta. “Na Suíça, um dos países da Reforma, ser pastor é coisa de um prestígio social tremendo. Os ministros têm curso reconhecido na universidade, conhecem grego, hebraico, latim.”.
“Estudei sete anos e meio, fiz um dos seminários mais exigentes e sei que muita coisa ainda falta”, reconhece, por sua vez, Alceu Lourenço de Souza Jr., de 36 anos, que tirou a maior nota no exame nacional de avaliação que a Igreja Presbiteriana do Brasil faz entre todos os seminários da denominação. Casado e com três filhos, Alceu, que era garçom, se candidatou e esperou dois anos para ser indicado pela sua congregação para começar a estudar no Seminário Teológico Presbiteriano, em São Paulo. E rebate a idéia de que tornar-se pastor é mera opção profissional ou uma chance para ter tranqüilidade financeira. “Senti um peso de responsabilidade pela igreja. Em nossa denominação o pastor não é dono da igreja nem do cofre, e costuma ter a remuneração média dos membros”, explica. Quanto aos pastores leigos, Alceu é taxativo: “Se Deus já está usando quem não tem instrução, creio que esse irmão deva buscar o máximo de formação que puder. Por que repetir erros por falta de conhecimento?”, conclui.
“A Bíblia diz que Paulo fazia tendas e que Neemias construiu os muros da cidade de Jerusalém. Pois eu sou pedreiro e pastor”, diz José Antonio Fernandes Espinela, de 51 anos, pastor da Assembléia de Deus Ministério Glória, na favela da Lagartixa, em Costa Barros, subúrbio do Rio de Janeiro. Nascido e criado no Evangelho, Fernandes, como é conhecido, estudou até a 5ª série do ensino fundamental e parou aos 17 anos, para trabalhar. Fez um curso de teologia básica em uma Assembléia de Deus e depois ordenado por um pastor pentecostal. “Sou respeitado na comunidade, mesmo entre os traficantes”, conta Fernandes, acrescentando que seu ministério tem levado muitos bandidos a Cristo. A igreja funciona em sua própria casa e reúne 40 pessoas. Seu trabalho pastoral? Evangelizar, orar e visitar as pessoas que sofrem. “O povo é pobre e não pode ajudar muito, então também faço trabalho de pedreiro. Algumas pessoas sentem no coração e dão ofertas, que são bem-vindas. Não peço nada, mas vivo da fé”, resume o pregador, que é casado e tem dois filhos.
Em Ourinhos, cidade do interior paulista, o pastor presbiteriano Eduardo Emerich, no melhor estilo calvinista, afirma que seu ministério estava decidido “desde o ventre” de sua mãe. Para ele, o pastorado não se trata mesmo de profissão. “O chamado nasceu e cresceu comigo. Ministério é vocação. Eu me dispus a exercê-lo e nunca dependi financeiramente da igreja”, ressalta, explicando que há 39 anos divide o tempo entre a congregação, que nunca passou de 150 membros, e o magistério, de onde tira seu sustento. “São quatro horas diárias para a igreja e quatro para a escola. Formei várias gerações de bons cristãos e bons cidadãos”, sublinha Emerich. Ao contrário do que muita gente pensa, ele afirma que ser pastor não dá lucro. “É como jogador de futebol; uns três ou quatro fazem sucesso e o resto apenas vive de modo satisfatório”, compara.
“Vasos de barro” – Para David Kornfield, fundador do Ministério de Apoio a Pastores e Igrejas (Mapi), as maiores dificuldades do ministério pastoral hoje são seminaristas sem claro sentido de vocação, as famílias disfuncionais dos futuros líderes e a ausência de mentoria espiritual. Ou, como prefere dizer, a falta de “pastoreio de pastores”, o que, acredita, poderia resgatar o sentido da vocação bíblica. Americano radicado em São Paulo e com doutorado em educação, Kornfield dá valor aos pequenos grupos, que buscam praticar o discipulado cristão e dividem suas experiências – o que chama de “pastoreio mútuo”, ao estilo da Igreja primitiva. Ele acredita que a tendência, em geral, é as igrejas darem cobertura aos pastores leigos e gradativamente ajudá-los com mais conhecimento bíblico, maturidade e firmeza emocional e espiritual. “As denominações tradicionais estão se abrindo para esta realidade e têm que se abrir mais, se não quiserem ser deixadas para trás”, comenta.
“A vocação leva as pessoas a manter os olhos e a mente voltados para Deus e para a cruz de Jesus Cristo”, sintetiza o pastor Ricardo Barbosa de Sousa, 52 anos, 25 deles à frente da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF). Ele dá aula de teologia pastoral no Seminário Presbiteriano de Brasília e ministra cursos no Seminário Teológico Servos de Cristo, de São Paulo. Barbosa lembra que o ministro tem a missão de viver como vaso de barro que leva o tesouro da Palavra de Deus, como descreveu o apóstolo Paulo: “Ele não tem poder nem sobre o serviço nem sobre o povo. Nenhum deles é seu”, continua. “O importante é o tesouro, a Palavra, mas muitos supervalorizam o barro, que só é valioso se permanece barro”.
Ele aponta para armadilhas no caminho dos pastores. “Duas palavras são muito usadas pelo diabo: a primeira é ‘leigo’, e 99% da igreja é qualificada nessa nomenclatura que a afasta de seu chamado. A outra palavra perversa é ‘profissional’, cujo foco é produtividade, renda, competência, ganho. Essa despersonalização leva o pastor a virar um executivo, um gerente religioso”, avalia. Para ele, a qualificação é pouco determinada em termos acadêmicos. “Há o aspecto afetivo: ‘Pedro, tu me amas?’, pergunta Jesus. E o que fez de Pedro alguém preparado para apascentar as ovelhas de Deus foi a intensidade de seu afeto para com o Senhor. O mais simples dos pastores, ao responder ‘tu sabes que te amo’, fará o melhor”, sentencia.
(Colaborou Treici Schwengber)
Projetos em andamento no Congresso Nacional
Se boa parte das denominações brasileiras têm incentivado seus pastores a buscar formação teológica, outro segmento evangélico parece trilhar caminho oposto. Dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional pretendem conferir o título de teólogo a quem simplesmente exerça algum cargo de liderança eclesiástica – aí incluídos os líderes de pequenas congregações independentes, missionários autônomos e até simples dirigentes de culto. Uma das propostas é do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), ligado à Igreja Universal do Reino de Deus. No entender do parlamentar, qualquer pessoa que exerça há mais de cinco anos a atividade de teólogo, mesmo sem qualquer formação, deve receber o título.
Já o projeto do ex-deputado peemedebista Victorio Galli, que é pastor da Assembléia de Deus no Mato Grosso, visa a considerar como teólogo desde quem administra comunidades religiosas até aqueles que simplesmente pratiquem a “vida contemplativa e meditativa” e realizem obras sociais de caráter cristão. Tais iniciativas, se transformadas em lei, permitiria que mais de um milhão de pessoas fossem consideradas teólogos, mesmo sem qualquer estudo na área. Hoje, na maioria dos seminários brasileiros, a colação de grau em teologia exige pelo menos quatro anos de estudo em nível universitário.
Informalidade é a regra
O ofício de pastor evangélico é reconhecido na Classificação Brasileira de Profissões, que o agrupa na categoria de “ministros de culto, missionários e teólogos”. Mas não é uma atividade regulamentada e não existem normas para exercê-la no país. Cada denominação ou grupo religioso usa as próprias regras, o que inclui a forma de remuneração – e a maioria dos pastores e igrejas prefere assim. Afinal, é bom manter uma distância segura entre Estado e religião. Uma associação denominada Conselho Federal de Teólogos, criada há pouco tempo, tem, no entanto, reivindicado a regulamentação da profissão.
Segundo a assessoria de imprensa do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), ministros religiosos contribuem, em sua maioria, como profissionais autônomos, mas o órgão não sabe informar o número de pastores segurados ou quanto é a contribuição média dessa categoria. A ausência de regulamentação é a razão do Ministério do Trabalho também não saber informar o número exato de profissionais do gênero.
Fonte: Biblioteca da Teologia
Valter Gonçalves Jr.
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